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Noite de show dos Boogarins em Porto Alegre. Foco na estreia do Bacuri, álbum que parei de escutar logo depois de conseguir o ingresso, seguindo os ensinamentos de meu pai, Sr. Luiz:
– O negócio é o cara não ouvir muito as músicas que o cara gosta, pra não enjoar né.
Um respiro de Brasil com s, na cidade cuja administração decidiu reprimir bloquinho de carnaval pra financiar o Saint Patrick’s Day. Vai vendo.
Tudo decorria tranquilamente, até que um diálogo bizarro marcaria minha noite. Parou o Uber na rua Joaquim Nabuco, bem do ladinho do Opinião. Eu já descendo, o nobre motorista me pergunta:
- Opa! Que que vai ter aí hoje?! Muita gente?!
Detestei ter que pensar numa resposta. Nada fácil. O que seria “muita gente”? Pra mim, o certo mesmo era uns rolê desses chamar estádio Beira-Rio lotado, Boogarins metendo laser importado da Eslováquia na cara de todo mundo, telão de quinze metros e oscarai.
No fim, com um pé já na rua, meio que só gritei de volta:
- Cara, se pá não vai rolar tanto movimento aqui mais tarde! É uma banda mais alternativa, entendeu?!
Só então me liguei que tinha descido em frente ao acesso dos camarins. Na verdade, eu tava bem do lado da van.
Fã ou hater né, aquilo. Na opinião de um amigo, "Relaxa. Se os caras te escutaram, no máximo deram uma gargalhada e mudaram de assunto".
No cerebelo, porém, o tríplex já tava alugado.
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Ao esperar da plateia os seres boogarínicos, com o Opinião devidamente cheio, eram essas as viagens que eu tinha em mente:
~Olha aí todo esse negócio contra escala 6x1, a vida do cara virada em trabalho, no que depender dos gravatinha até o lazer da gente precisa virar trabalho.
~E esse negócio aí de "consumir" música? Mas rapidão aqui, quem é que hoje em dia realmente consegue parar pra sentir um álbum?
Papo de véio né, tranquilo. Mas nada como a psicodelia pra esticar o tempo e abrir as ideias. No que entrou a banda e o povo se aglomera no escuro, me passa um filme.
Era o Rick Beato, aquele velhote que vive publicando entrevistas massa no YouTube, intercalados com resmungos sobre como a música de hoje em dia morreu e etc.
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Uma vez, esse cara comentou a lista dos 25 artistas com mais reproduções no Spotify pra debater que praticamente nenhum conjunto musical consegue driblar os moedores de carne.
Na época do vídeo, só existiam três bandas formadas nos últimos 10 anos. Uma se chamava Grupo Frontera e outra era Richy Mitch & The Coal Miners, cujo som fui pesquisar e achei deboinha. A terceira era aquele cosplay de farofa do Måneskin.
O que o Rick dizia ali era que, se do ano 2000 em diante tudo virou boy band, a partir de 2010 não era mais negócio nem sequer "ser" uma banda.
Mas foi neste período que os Boogarins entraram em cena.
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Como fã recente que sou, um pouco de contexto tá valendo.
Parece que a Boogarins vem transando com temas sobre ciclos, nascimentos e mortes desde os primeiros trabalhos, ou pelo menos foi isso que me fisgou quando ouvi eles pela primeira vez, ao sair da lama da pandemia.
Bacuri tem a ver com saudar a paternidade de alguns músicos, mas também celebra a longevidade e maturidade da banda, pela forma que o álbum foi gravado e produzido.
O álbum de estreia, As Plantas que Curam (2013), chamou atenção rapidamente depois de lançado no Bandcamp e postado em um blog norte-americano para quem eles tinham mandado o material. Não demorou muito e a banda recebeu uma proposta da gravadora Other Music.
O segundo disco, o pra mim impecável Manual - ou Guia Livre de Dissolução dos Sonhos (2015), rendeu uma indicação ao Grammy, e depois disso eles entitulam o próximo álbum de Lá Vem a Morte, em 2017.
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Tu já deve estar entendendo onde quero chegar: aí tava uma banda jovem abraçando todas as brilhantes promessas da indústria da música, ao mesmo tempo centrando a sua criação com letras sobre a impermanência das coisas.
Em 2019 veio Sombroudúvida, seguido por sessões experimentais ao vivo, e por fim um álbum duplo chamado Manchaca (2022), com sons nascidos desses improvisos.
Em todos estes, faixas que seguem batendo forte no público e no repertório. E então, Bacuri (2025).
Até aqui, a evolução do processo criativo da banda sugeriria uma intimidade cresente à experimentação coletiva. O que eu ainda não tinha parado pra pensar era para qual direção as apresentações ao vivo deles estavam evoluindo.
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De volta ao presente, corta pro Opinião. O que pareceram três horas de reflexão talvez me tenham durado somente alguns minutos.
De repente, aquele fluxo de pensamentos – da imagem do Rick Beato até minhas impressões da banda – se rompeu. Algo mudava e o tempo já parecia distorcido enquanto se ajeitavam no palco, nessa ordem: Dinho, Ynaiã, Raphael e Benke.
Me lembrei do último show deles que vi ali em 2022, em que desfilaram várias dos Manchaca e do Sombroudúvida [acompanha aqui o setlist]. Ali a formação era contrária: Dinho assumia os vocais à direita do palco, assim como a cantoria na maior parte das músicas.
Lembrei também no show que fui no Agulha em 2024, uns dias antes da enchente que engoliu a cidade: o Dinho tava mais pro centro, e com ele a maioria dos vocais.
Sou meio míope também na real, e nem sei se era essa a proposta da banda. Mas agora com microfones sem dono e um palco sem centro definido, de algum modo era como se a banda tivesse se multiplicado.
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A faixa-título inicia e põe o baterista Ynaiã no centro. As baquetas falando primeiro, sem clichê, sem deixar pra depois; coisa fina, dando tempo pra tudo.
Do nada, nos milissegundos entre dois toques da baqueta, me surge aquela troca de ideia entre os filósofos Deleuze e Guattari, quando disseram que o Kafka fazia uma “literatura menor” por escrever em uma língua marginal. Pros caras, ser “menor” era o que tornava Kafka um escritor grandioso, porque naquele jogo dele ali não cabiam mais comparações.
Um feixe de luz amarela contra os olhos me traz de volta ao show, e começo a pensar sobre em que medida os Boogarins fazem parte de um movimento de “música menor”.
A bandinha – como a própria banda costuma se descrever nas redes – estava lá como banda menor, não no sentido de uma banda inferior, mas no sentido deleuziano:
Abraçando a importância de criar às margens das linguagens dominantes da indústria; seguindo os experimentos e deslocamentos sensíveis em português brasileiro – e agora, enquanto pareciam buscar um organismo vivo no palco, desmontando hierarquias, investigando a potência que pode haver dentro da fragmentação.
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Primeira música do show, e tanta coisa já estava sendo dita. A armadilha das comparações, por exemplo.
Talvez pela total falta de referência do nosso clássico jornalismus preguiçosus sobre o que é ser uma banda de rock psicodélico no Brasil de hoje, o som dos Boogarins acaba sendo comparado ao Tame Impala.
Mas tem um problemão nisso daí.
Tame Impala é ótimo e nosso amigo Kevinho é um cara dedicado e inspirado, então é claro que essa comparação busca um elogio. Mas o projeto australiano é uma visão controlada; uma viagem de estúdio que, em cima do palco, ganha no máximo uns ajustes escolhidos a dedo.
Nada de errado nisso, inclusive curto o clima dos Pink Floyd da antiga, os caras entrando e saindo do palco sem dar nem bom dia, com zero paciência pra conversinha de elevador.
Mas felizmente a psicodelia é diversa, e dentro dela cabe também a daquela espécie que só pode surgir na vivacidade da criação aberta entre músicos ao vivo.
Quando bandas criam em conjunto, tendem a levar também ao palco algo que muitos projetos não conseguem – a energia dessa criação coletiva.
Essa diferença fica clara, o momento se resolve e tudo isso faz sentido enquanto Ynaiã canta sobre a experiência de reinar na poeira do sol.
Para as viagens entre Rick Beato e Deleuz&Guattari, não me parecia haver uma analogia mais interessante que essa.
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Faixa a faixa, Bacuri foi apresentada como a coroação do reinado de uma banda “menor”, fazendo tudo o que aprendeu e mantendo aberta a experimentação, para além de comparações.
No palco, as músicas recém-nascidas já caminhavam sozinhas. A cada pedrada, uma sonoridade esgarçada fazia com que dez músicas se transformassem em umas quinze ou vinte, mas o domínio temporal ia além de simplesmente jogar com o clímax.
E como não podia deixar de ser, a performance acompanhava o lirismo.
Em Chuva dos Olhos, falam da libertação marginal deste sujeito que "não quis ter mais / não quis ter chão, só quis ter paz”;
Em Chrystian & Ralf (Só Deus Sabe), Benke assume os vocais para dizer de todo trabalho envolvido - “Soprar, amar / Cantar sem medo / Um artifício meu / Melhor que sufocar / E por tentar falar / Do irreal / Acabo passando mal”;
Em Corpo-Asa, também contam do outro lado, sobre como também tem o “florescer, pagar pra ver, ... contar sonhos”;
“Não liga se tá tarde / Não importa mais / Queira desviar” – acho que foi enquanto Amor de Indie se dissolvia que Raphael desviou o olhar pra um vão acima do palco e assoviava uma melodia outra, nos distraindo do fim;
Em algum momento de Deixa (meu favorito do set), Benke entra de ponta-cabeça nas progressões e timbres de Gilmour até a melodia varrer tudo pra dizer que "a força de ser entorta toda direção”;
E na altura em que Raphael puxa a fodástica “Poeira”, os caras já tavam lendo mentes. “Falo nada / Mudo de opinião” me resumiu a coisa toda.
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Num mundo onde quadrilhas de gravatinhas disfarçados de produtores pirateiam sonoridades a rodo para doar singles à performance de bonecos infláveis milionários, Boogarins aponta para o inventar, o ampliar e o arejar.
Como quem joga um colete salva-vidas em meio ao tsunami que nos incita a consumir conteúdos, são existências como essas que ameaçam tornar acessíveis as formas raras de expressão criativa.
Entregue e dedicada à necessária psicodelia de todo dia, a "bandinha" dos seres boogarínicos sobe ao palco sabendo exatamente onde vai seu reinado. Não apesar da música que criam, mas através e por causa dela.
Uma tarefa reservada aos gigantes.
Angustifolia ~ Slow words.